Vale a pena logar para Tails Noir?
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28/10/2025 por Juliana Bolzan
Uma prosopopeia não tão distópica.

E se a femme fatale dos filmes de detetive do Cinema Noir fosse uma raposa astuta e enigmática, que te ajuda em um suspense policial ambientado em uma Vancouver distópica? Tails Noir, desenvolvido pela EggNut e publicado pela Raw Fury em 2021, oferece essa experiência que é tanto densa quanto inusitada, tendo me infligido sucessivos incômodos atenuados pelo belíssimo gráfico e pela trilha sonora estupenda. O frequente preto e branco que nomeia o estilo acertadamente dá lugar a paletas de cores fechadas e sombrias, com artes simples, porém marcantes. O jazz que embala o percurso do nosso protagonista é daqueles que só falta harmonizar com uma nuvem de cigarro e um whisky ao tilintar do gelo.
Os personagens são todos animais antropomórficos, o que me trouxe associações perturbadoras. A primeira delas foi com o romance gráfico Maus de Art Spiegelman, multi ganhador de prêmios nos quadrinhos. Spiegelman conta a história de seus pais durante o Holocausto e os animais representam diferentes etnias. As duas principais, seguindo a cartilha da propaganda nazista, coloca esses como gatos e os judeus como ratos. Em Tails Noir os macacos são o mal maior, corruptos do poder, da ganância e do controle. São venerados e temidos, ditando normas e dominando os demais animais. Até aqui as espécies são separadas em castas, com algumas condenadas à pobreza e à humilhação apenas por serem o que são. Os símios terem esse papel de elite vilanesca no jogo - nossos parentes mais próximos - é uma mensagem e tanto.
A segunda inquietação dessa prosopopeia é a própria escolha de quais animais são representados como humanos e quais permanecem como os conhecemos no mundo real. Qual o sentido de uma lontra traficante saborear um salmão ou um guaxinim fotógrafo atirar sementes a pombos? A indagação torna-se bem mais obscura do que isso, tendo me dado ânsia de vômito quando o jogo me forçou a pensar em porque nós humanos comemos outros animais. Me passou pela cabeça se não seria moralmente mais correto se os animais de Tails Noir e até eu fôssemos vegetarianos. O ápice de toda essa bizarrice animalesca deixaria o compositor Camille Saint-Saëns e sua peça orquestral “Carnaval dos Animais” com um singelo ar juvenil frente ao macabro, porém épico desfile que anuncia a grande virada da história.

O mundo de Tails Noir é contornado por opressão e tenebrosidade. Porém, essa distopia não é tão imaginária assim. O jogo me lembrou a soberana segunda temporada Asylum de American Horror Story, que por si mesma é uma alusão aos - novamente eles - nazistas. A escolha de animais já desumaniza os personagens, mas se faz questão de também desanimalizá-los. Há uma longa cena de caminhada cujo término dá a mesma intensidade de alívio quanto outra cena me deu de sufoco respiratório. Há uma permanência de sofrimento, uma experimentação maligna e cruel digna das “pesquisas médicas” feitas pelo bem da supremacia racial ariana. O muro tantas vezes citado, mas nunca visto, alimenta a separação ora real ora fictícia imposta em inúmeras ocasiões entre povos na nossa história. A humanidade já passou por essa distopia e não precisamos ir tão atrás no tempo para encontrarmos governantes querendo fazer experimentos até com seu próprio povo. A arte nos oferece reflexões através de metáforas, basta saber reconhecê-las. Talvez a parte final do jogo seja demasiadamente inesperada, sem dar muitas respostas e mais apressada do que merecia, mas o conteúdo é magistral e necessário. Entra-se em um redemoinho psicológico certamente baseado em Disco Elysium, e essa inspiração é mais bem executada no Tails Noir Preludes, lançado 2 anos depois.
Esse novo jogo é uma prequela para a história, e te faz acompanhar quatro protagonistas. Embora tenha uma jogabilidade bem mais simples de basicamente escolhas de diálogos, aqui há um brilho narrativo especial. Foi interessante me colocar no lugar de personagens diferentes e tentar fazer escolhas condizentes com o caráter de cada um, ao invés de ser sempre a boazinha gentil.

O aspecto mais pessoal de Preludes até me permitiu relembrar situações pelas quais já passei. Um lamento agridoce pelas realizações científicas esquecidas pelos caminhos da vida e um triste término de relacionamento em papéis invertidos. Como diz o ditado, quando damos um passo para a frente, inevitavelmente deixamos algo para trás. Esse é o tom de Preludes, desembocando de forma satisfatória na história do jogo original. Em meio a tantas provocações complexas, é possível dar boas risadas com o humor ácido do Noir ou com o humor mais jovial de Preludes. A jogabilidade simples volta toda a atenção para o conteúdo, que mais do que agrada aos olhos e aos ouvidos, ao mesmo tempo que mergulha o jogador em um clima policial horrendo.
Tails Noir tem uma recepção mista na Steam. Originalmente chamado Backbone, foi realizado a partir de financiamento público pelo Kickstarter onde parece ter prometido mais do que entregou. Depois das críticas, o estúdio alterou o nome do jogo e lançou o Preludes, que para alguns serviu como um pedido de desculpas, embora para outros não tenha sanado um alegado decaimento de qualidade na metade final do jogo original.

Tails Noir está em todas as plataformas, incluído na PS Plus e localizado para o português. Tails Noir Preludes só está disponível para PC e sem tradução para nosso idioma. Se possível, entendo que a experiência só está completa com os dois jogos, e na ordem em que foram lançados. Levei 11 horas no total. É uma história com algumas ausências de explicações, mas cairá bem para quem gosta de doses de psicodelia. Agradeço ao meu amigo Lucas Maceda, apresentador do podcast A Última Fogueira, por ter me indicado e dado essa bela saga. Foi meu primeiro presente na Steam!




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