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Hell Clock: o ciclo brasileiro de massacres

30/10/2025 por Juliana Bolzan

capa do jogo hell clock com o protagonista pajeú e um relógio

Hell Clock é um jogo roguelike desenvolvido pelo estúdio brasileiro Rogue Snail e publicado pela Mad Mushroom em 2025. Como meu apreço por rogues é duvidoso, o que me fez jogá-lo foi a temática da Guerra de Canudos. Há pouco tempo eu havia escutado dois episódios a respeito do conflito no podcast Geopizza, e mais uma vez constatado que o que aprendemos na escola sobre a nossa história é superficial. Talvez não tenhamos naquela idade maturidade suficiente para entender completamente as tramas políticas, sociais e culturais que explicam acontecimentos como Canudos, e por isso é tão interessante que um jogo possa trazer o tema para discussão. Hoje em dia as diferentes mídias disponíveis facilitam bastante a busca por conhecimento, basta não se acomodar na ignorância.


Jogabilidade


Embora pertença a um gênero que não me atrai, a jogabilidade de Hell Clock me surpreendeu. Souberam dosar a progressão obtida em cada excursão para que a repetição não se tornasse frustrante ou maçante. A sensação de que estava avançando cada vez mais nas fases só não foi permanente por descuido meu. Demorei a perceber que podia melhorar o nível das habilidades e das relíquias e que as relíquias que faziam efeito eram apenas as que estavam na aba que eu deixava aberta por último. Talvez tenha sido por minha falta de contato com o tipo de interface utilizada, ou talvez o jogo pudesse ter explicitado melhor esse funcionamento. De toda forma, me diverti bastante com o estilo que é uma maravilhosa mistura de Hades com Diablo. Estamos bem de infernos!


Uso de habilidade no estilo diablo com dano nos inimigos

A Rogue Snail também acertou muito ao oferecer uma dificuldade modular. É possível ajustar vários componentes para deixar o jogo mais ou menos desafiador, inclusive desabilitando o relógio regressivo que nos acompanha na caminhada. Esse é um diferencial muito interessante de Hell Clock. Eu quase o desabilitei, mas não faria sentido ficar sem essa característica única que, além de dar nome ao jogo, pode ser visto com um significado maior, como falarei mais adiante. Bastou utilizar a árvore de melhorias do Grande Sino para aumentar o quanto o relógio seria paciente comigo e foi tranquilo parar de morrer por tempo e passar a morrer só por morte morrida.


Caso você queira mais desafios após finalizar a história, literalmente um céu completamente novo se abrirá em sua vida. Um enorme número de melhorias aparece em constelações que você pode desbloquear ao completar desafios de hordas, bem como dificuldades cada vez mais demoníacas podem ser selecionadas. Assim como o nome das habilidades e das relíquias, as constelações são o puro suco da brasilidade. Você pode ter uma peixeira como arma, rezar por proteção ou obter bênçãos de Santo Expedito, Oxum e Tupã.


Capa do álbum da trilha sonora de Hell Clock

Um dos pontos altos de Hell Clock é a dublagem dos personagens e a trilha sonora composta por Thommaz Kauffmann. Absolutamente espetaculares, nível de cinema. Ambos dão um tom de imersão mais do que brasileira, mas especificamente nordestina, baiana e sertaneja. A retratação de Canudos e de seus personagens-chave é o que engrandece o jogo, dando-lhe um maior peso cultural e destaque narrativo, assim como ele dá importância a esse evento cruel da história de nosso país.


Canudos


Hell Clock se passa oito anos após a Guerra de Canudos, ocorrida entre 1896 e 1897. Um pouco antes, em 1888, a Lei Áurea lavou as mãos escravagistas da monarquia no melhor estilo Pôncio Pilatos. Enquanto os ex-escravos foram deixados à mercê de um destino qualquer, a elite agrícola lamentou profundamente a perda dessa mão-de-obra. Canalizou sua raiva por essa astúcia da realeza apoiando o golpe dos militares, que proclamaram a República em 1889. Uma aliança pelo visto antiga e perene. Foi nesse contexto que Antônio Conselheiro ajudou na concretização do arraial de Canudos no sertão baiano, rebatizado por ele de Belo Monte. O letrado peregrino cearense passou boa parte de sua vida como nômade, trabalhando como caixeiro, professor ou escrivão. Auxiliava necessitados, de onde veio a alcunha de conselheiro. Também ajudou a libertar escravos e os acolhia, o que, junto com suas pregações religiosas, acabou gerando um grupo de seguidores. Quem não gostou nada dessa vertente messiânica foi a Igreja, e Antônio Conselheiro conseguiu juntar contra si a Santa Trindade brasileira: o agro, a cruz e a espada.


Imagem do jogo Hell Clock mostrando soldado do exército brasileiro num cavalo segurando uma espada

É claro que tamanha afronta não ficaria incólume. O Estado brasileiro decidiu que a reunião de 25 mil miseráveis numa comunidade organizada por subsistência e coletivismo era uma ameaça à República, lançando uma série de incursões que dizimou a população de Canudos. Isso sem não antes contabilizarem significativas baixas no seu próprio efetivo, fruto da arrogância e do desconhecimento de onde estavam se enfileirando. Foram no total quatro investidas contra o arraial e o jogo constrói muito bem essa história. Personagens importantes são gradativamente apresentados a cada avanço. Há assim a sensação de que realmente se está experimentando aquilo de novo e de novo, assim como Belo Monte o vivenciou por mais de uma vez.


Nosso protagonista Pajeú era ex-escravo e foi um dos líderes guerrilheiros de Canudos, tendo sido morto na derradeira invasão. No jogo, de alguma forma ressurgido dos mortos, seu objetivo é achar e ajudar a dar paz ao espírito de Antônio Conselheiro e consequentemente a todas as almas penadas das vítimas da guerra. Seu primeiro palpite é o inferno, para onde somos conduzidos. Encontramos logo no início o seu parceiro João Abade, principal comandante na defesa do povoado. Guardando os confins das trevas está o Corta-Cabeças, coronel Moreira César, militar implacável cujo apelido fala por si só. Antes dono de uma carreira vitoriosa, capitaneou sua morte na fracassada terceira expedição. Isso exigiu medidas enérgicas do presidente do Brasil: o próprio Ministro da Guerra, Marechal Carlos Machado de Bittencourt, foi enviado à Bahia para controlar de perto a continuidade da operação.


Imagem do jogo Hell Clock mostrando Pajeú se encontrando com o Ministro da Guerra Bittencourt

Não achando Antônio na descida ao inferno, voltamos à cidade santa de Belo Monte. Aqui senti exatamente o que foi descrito no podcast que mencionei no início: as casas foram construídas sem planejamento urbano, tornando as ruas um labirinto. Essa característica que ajudou a resistência dos sertanejos torna nossa caminhada nessa parte do jogo sufocante. É olhar para o relógio, matar inimigos e tentar não se perder. Encontramos Bittencourt e uma inundação de inimigos que representam “A Matadeira”: emprestado da Marinha, o canhão Withworth 32, moderna artilharia da época, foi essencial para dar fim ao combate. O trambolho teve que ser levado por ferrovia (assim como os mais de 5 mil soldados) e foi responsável pela morte de Pajeú. Como a arma estava causando um dano imenso, ele e outros guerrilheiros tentaram destruí-la numa tocaia, mas nela pereceram.


Na terceira fase de Hell Clock, Pajeú chega a embarcar em um trem. Mais do que a referência ao transporte utilizado pelos militares, a forma como é colocado no jogo remete ao operacional nazista. E nos faz lembrar de que Canudos foi mais do que um conflito armado, foi também um macabro experimento eugenista.


A eugenia como base de um país


Ói, ói o trem

Vem surgindo detrás das montanhas azuis

Olha o trem

Ói, ói o trem

Vem trazendo de longe as cinzas do Velho Aeon

Ói, já é vem

Fumegando, apitando e chamando os que sabem do trem

Ói, é o trem

Não precisa passagem, nem mesmo bagagem no trem

Quem vai chorar, quem vai sorrir?

Quem vai ficar, quem vai partir?

Pois o trem está chegando

Tá chegando na estação

É o trem das sete horas

É o último do sertão

Ói, ói o céu

Já não é o mesmo céu que você conheceu

Não é mais

Vê, ói que céu

É um céu carregado, rajado, suspenso no ar

Vê é o sinal

é o sinal das trombetas dos anjos e dos guardiões

Ói, lá vem Deus

Deslizando no céu entre brumas de mil megatões

Ói, ói o mal

Vem de braços e abraços com o bem

Num romance astral

Amém..............


Raul Seixas, O trem das sete, 1984


Imagem do jogo Hell Clock mostrando Pajeú desesperado

Após muitas horas de jogo, Pajeú finalmente encontra Antônio Conselheiro. Ele está no laboratório de Nina Rodrigues. O médico maranhense, filho de coronel, analisou o crânio de Conselheiro em 1897 a fim de comprovar sua teoria de “criminalidade nata”: fazia pesquisas sobre a degenerescência e a tendência nata ao crime de negros e mestiços. Neste caso específico não chegou à conclusão que queria, afirmando que Conselheiro era um simples louco.


O exército brasileiro teve em sua última incursão a companhia do jornalista fluminense Euclides da Cunha. Enviado como correspondente de O Estado de São Paulo, o defensor da superioridade racial branca relatou em seu livro Os Sertões o que pôde verificar in loco sobre o sertão nordestino. Nem a mais racista visão do mestiço decaído impressa em seu famoso livro resistiu à crueldade do conflito. Sua obra é também uma crítica à forma como a República apagou os belomontenses da existência.


Nina, Euclides e Canudos são apenas exemplos de tantos pavorosos casos de eugenia na história do Brasil. Desde a primeira caravela vemos e revemos violência e apagamentos baseados em superioridade racial ou econômica e em políticas de descarte de indesejáveis. Os povos originários ou os trazidos à força foram largados sem rumo quando não mais podiam ser explorados até a morte. Projetos de modernização urbana afetam apenas os pobres, que são desalojados e jogados para a periferia longe de seus trabalhos, com transporte e saneamento precários. No século XX o governo brasileiro financiou a imigração de italianos como engenharia social de branqueamento da população, na crença de que os bons fenótipos se desatacariam na miscigenação. Fizemos nosso próprio Holocausto depositando negros e indigentes sem diagnósticos de doenças mentais no hospital psiquiátrico Colônia em Barbacena. Realizamos chacinas em Carajás, em Vigário Geral, em Carandiru. Deixamos garimpeiros invadirem terras indígenas, culminando na crise humanitária dos Yanomami durante a pandemia.


Imagem do jogo Hell Clock mostrando letra dos Racionais MC em um relicário
Letra dos Racionais MC's no relicário do jogo

O padrão é sempre igual. A história do Brasil é um ciclo de massacres para os mesmos. É uma triste metáfora à recorrência de um jogo roguelike. O relógio do inferno bate sem parar para as minorias. O tique-taque marca o quanto já foi possível sobreviver, mas também é uma contagem regressiva para quando a próxima autoridade decretará a sua eliminação. Hell Clock consegue trazer esse sentimento ao longo da narrativa, com ápice na última fase. Canudos se repete todos os dias. Porém, como disse Mark Venturelli (diretor do estúdio) em uma entrevista sobre o jogo, o brasileiro não desiste nunca. Nós sempre carregamos a esperança de que dias melhores virão. E assim continuamos.



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